Na era da repressão togada, a gestação de embriões de monstros

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  • Por Kátia Magalhães –

Muitos tendem a imaginar regimes autoritários como ambientes onde a concepção e a implementação de práticas cruéis cabem apenas aos poderosos despóticos, enquanto todos os demais se restringem ao cumprimento de determinações ilegais, como meros cordeirinhos, sob o domínio da coerção exercida por seus senhores. Porém, a realidade parece desmentir a crença simplista de que a privação da liberdade possa perdurar pela simples conduta de um ou de alguns poucos sádicos em posições de mando, cercados por uma manada de indivíduos ainda compassivos diante do sofrimento alheio.

Nem precisamos nos distanciar muito no tempo e no espaço para pensar em situações horripilantes aos olhos de qualquer indivíduo no gozo pleno de sua sanidade mental. Há pouquíssimas semanas, um magistrado assistente de Alexandre de Moraes nos casos do 08/01 tomou o depoimento de um senhor cuja saúde apresentava comprometimentos graves ligados a comorbidades adquiridas após o seu período de encarceramento no presídio da Papuda. Diante do juiz, o idoso reportou seu câncer de próstata agressivo, a intervenção cirúrgica recente à qual havia sido submetido e a consequente necessidade de uso de sonda e de fraldas (devido à incontinência). Não obstante todo esse relato, o magistrado, inabalável em sua frieza, declarou “homologada a prisão, não havendo qualquer mácula”.

Na mesma toada, segue presa preventivamente, desde março do ano passado, a jovem Débora Rodrigues, responsável pela pichação da expressão “perdeu, mané” em estátua do STF. O objeto foi restaurado ao seu estado original mediante o simples uso de sabão, mas a liberdade da jovem não foi devolvida até hoje. Situação esdrúxula, em se tratando de conduta de baixíssimo potencial lesivo, punível mediante a prestação de serviços à comunidade ou o pagamento de cestas básicas. Mais esdrúxula ainda se pensarmos que a pichadora, mãe de dois menores sob a sua guarda, teria feito jus à conversão de sua prisão preventiva em domiciliar, nos exatos termos da lei processual penal.

Em meio aos casos dignos de filmes de terror, destaca-se a prisão de Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro, detido por juiz incompetente, sem evidências de prática delitiva e, pasme, com base na afirmação mentirosa de que o rapaz teria viajado aos Estados Unidos no final de 22 ao lado do ex-presidente. O recente detalhe sórdido, de causar engulhos a qualquer ser humano digno de tal designação, consiste nas “retaliações” impostas ao preso político no complexo penitenciário de Pinhais. Segundo denúncia do desembargador aposentado, Sebastião Coelho, ora atuante na defesa de Martins, o rapaz estaria sendo afastado de seu trabalho na biblioteca do cárcere e colocado em cela ao lado de quatro ou cinco delinquentes potencialmente perigosos. Nas palavras do advogado, a iniciativa dos “castigos” partiu do diretor do estabelecimento, Edwaldo Willis, filiado ao PT, e que, à toda evidência, colocou sua postura ideológico-partidária acima de seus deveres de servidor público. Pior ainda: acima da percepção da própria dignidade humana.

Tampouco se poderia deixar de aludir ao inferno vivenciado por outro preso do 08/01, o bacharel em direito Lucas Brasileiro, que, segundo denúncias de seu pai e de seu advogado, teria sido alvo de dois chutes nas costas e de um tapa entre a orelha e a face em episódios de agressões por parte de agentes penitenciários do centro de detenção da Papuda. Violência e covardia protagonizadas por funcionários do sistema prisional, que, em vez de preocupados com o mero cumprimento de suas funções, parecem ter se deliciado com a visão do rapaz ferido, indefeso e cambaleante, diante do qual sussurraram, entre risinhos cínicos: “esse aí é patriota”.

Nem só de tortura a humanos já formados se nutre a nossa triste republiqueta. Basta observar a nova onda de histeria abortista, cujo ápice, pelo menos até o momento, coincidiu com a recente deliberação tomada por nosso censor magno contra cinco hospitais paulistas. Não satisfeito em ter deferido uma liminar para restabelecer o procedimento cruel da assistolia fetal (vedado pelo Conselho Federal de Medicina), o “supremo dos supremos” ordenou a comprovação da implementação da prática sob pena de responsabilização pessoal dos médicos. Além do desprezo à ordem constitucional e legal, o todo-poderoso juiz afrontou a obrigação básica imposta a todos os clínicos de zelar pela vida humana em qualquer de suas formas. Poder sem limites, torpeza idem.

De tanto ver prevalecer a repressão estatal arbitrária, com louvores públicos aos protagonistas do regime, cada indivíduo entregue a uma mídia pasteurizada e desestimulado a qualquer tipo de reflexão tende a imitar os “de cima”. A violência em um macrocosmo desrespeitoso para com as normas estabelecidas se espraia, aos poucos, para os microcosmos das mais diferentes relações de poder, fazendo com que o cidadão comum se comporte como uma réplica caricata do tirano de plantão. É o que se observa no juiz encarregado da prisão do idoso com câncer, nos policiais envolvidos na prisão da pichadora da estátua, no diretor do presídio de Pinhais, nos agentes penitenciários responsáveis pelos golpes no bacharel e em todos os médicos prontos à execução de feticídio.

A ruína da institucionalidade traz consigo um acirramento na permissividade e em todos os nossos piores instintos, como ilustrado pelas deploráveis situações acima. Em sociedades onde seres humanos são constantemente adestrados para a cessação da atividade de pensar e, por consequência, para a renúncia à própria humanidade, surge um terreno fértil para práticas aberrantes por pessoas comuns.

Monstros gestados a partir do crime abominável de estupro? Sem qualquer pudor, nossos senhores de mando transferem para os ombros de seres inocentes, que sequer viram a luz, a carga insuportável do arbítrio e do sadismo fertilizados pelo autoritarismo reinante. Mantenhamos intactas a nossa lucidez e humanidade e rechacemos a narrativa canalha que transforma pobres fetos em bodes expiatórios dos delitos de nossos figurões e de todos os seus servos. Em vez disso, sigamos apontando o dedo contra as verdadeiras abominações da corrupção endêmica e da aniquilação do Estado de Direito, ameaças crescentes a todas as nossas liberdades!

Kátia Magalhães

Advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

 

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