Eu costumo dizer que, quando chega o final de ano e começam os comerciais de Chester e as imagens de Papai Noel saltando em nossas telas, a minha vida vira um inferno. Você aí do outro lado da tela pode pensar: lá vem outro rabugento falar mal do Natal. Saiba os leitores que eu sempre trocava meus plantões para ficar livre no Natal. Mesmo que isso significasse dar plantão no Reveillon. Não me incomoda o arroz com passas nem o tiozão do pavê (é pavê ou pra comer?), além da presença inevitável de uma ou duas malas sem alça que acabaram lá num canto da Ceia, e ninguém sabe quem convidou. Eu adorava o Natal, principalmente a Véspera.
Meu Natal começou a ficar seriamente comprometido foi com a especialidade que eu escolhi, a Psiquiatria. Não sei dizer se as outras especialidades são tão sobrecarregadas nessa época. Para os psiquiatras, é bem puxado. Seja porque todo mundo quer ser atendido antes de vinte de Dezembro, porque, claro, o mundo vai terminar depois de vinte de Dezembro. Os pacientes também chegam atrasados em taxa recorde: todos ficam presos no trânsito de Natal. Eu não tenho os dados, mas a impressão é que esse senso coletivo de urgência também causa mais acidentes de trânsito. Eu dirijo com o dobro da atenção, com a pista sendo riscada por entregadores em suas motos e carros de visitantes que vem fazer as compras de Natal aqui na Paulicéia desvairada de Papai Noel.
Li um trabalho na Clinical Neuroscience que interrogava essa questão: as pessoas realmente ficam pior, do ponto de vista psiquiátrico, na época do Natal? Temos que pedir ao Papai Noel muitas caixas de Prozac? Os resultados do estudo foram bem interessantes:
Na proximidade da dita Noite Feliz, no entorno da véspera e do dia de Natal, há um aumento de incidência de excessos de Álcool e outras drogas, sobretudo a Cocaína. Isso aumenta também os eventos relacionados, como agressões e violência doméstica. Não há, veja bem, não há aumento de pessoas que vão procurar a Emergência com quadros depressivos, nem aumento das tentativas de autoagressão ou suicídio
perto do Natal. Há, inclusive, uma diminuição no número de pacientes nos Pronto Atendimentos Psiquiátricos. Acho que até os assaltantes dão um tempo em suas atividades e ficam com a família, entre pratos de arroz com passas e salpicão de frango. Mas isso muda de figura quando passa o Natal: até o Ano Novo, aumentam os relatos de Depressão e aumenta o risco de autoagressão, o que inclui risco de atentar contra a própria vida. Uma opinião pessoal desse que vos escreve é que a Simbologia das duas datas é muito diferente: no Natal, muita gente se incomoda com a nova doença de nosso tempo, que são os Natais de Instagram e Facebook, onde todo mundo está eufórico e as famílias próximas e amorosas como um comercial de margarina. Essa comparação é mais um sofrimento dessa época do ano. A sensação de solidão e de isolamento, além da lembrança dos que não estão presentes à mesa são estressores adicionais. Mas a diminuição do uso dos serviços de urgência, somados a um aumento nos dias posteriores, sugere um esforço coletivo de não estragar o Natal e de reunir as pessoas nessa data, inclusive aquelas que você não verá até o próximo Vinte e Quatro de Dezembro.
A virada do ano tem outra simbologia: A mudança de ciclo, da passagem para o Ano seguinte. Aumenta a pressão pela euforia compulsória e as praias apinhadas de gente. E aumentam as situações relacionadas ao desespero, como a violência contra si ou contra o Outro, os acidentes e as ocorrências relacionados a Álcool e Drogas e, para algumas pessoas mais vulneráveis, a sensação que não vai haver passagem para o Ano Novo. Como de o último dia do ano fosse uma barreira difícil demais de ultrapassar. Nessa época, por estranho que possa parecer, tem mais gente indo ao Pronto Atendimento e maior risco de violência e de Depressão, além de maior risco de acidentes graves e excessos de álcool e drogas.
O que eu recomendo para uma Noite Feliz e várias outras noites felizes? Recomendo o Cuidado: cuidado com as pessoas, cuidado com os idosos, os solitários e com aqueles que estão lutando contra uma doença mental. Durante a pandemia, uma repórter perguntou para uma menina, que estava numa festa clandestina de final de ano: “Você não sabe que tem gente morrendo de Covid?”, ao que ela respondeu, à moda de alguns da época: “E daí? Não sou eu que estou morrendo…”
O espírito do final de ano deve ser exatamente o contrário dessa atitude. Eu brinco que os psiquiatras só deveriam tirar suas férias depois da virada
do ano. Até lá, devemos, como diria Caetano, estar atentos e fortes. E podemos entender que, sendo uma época mais estressante coletivamente, cuidar de si e cuidar das pessoas amadas é a primeira forma de prevenção.
Um Natal que seja Feliz e em Paz e um Ano Novo que seja Novo para todos os leitores que estiveram conosco nessas colunas. Um agradecimento especial para a jornalista Vera Rodrigues, que divulgou esse trabalho, para os veículos que o publicaram, e para você que leu, espero, alguns desses textos.
Um 2024 que nos receba atentos e fortes.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”