– Por Kátia Magalhães –
Em nossa atual anomalia institucional, imagino diariamente quais os possíveis malabarismos retóricos empregados pelos docentes de cursos jurídicos, em sua missão quase impossível de transmitir conhecimento relevante na área. Num país onde os princípios do direito constitucional, do direito penal, dos processos civil e penal e de outros ramos mais parecem obras de ficção, bem apartadas da realidade do noticiário, deve ser penoso convencer estudantes a gastarem suas horas ouvindo um palavrório desprovido de qualquer utilidade prática. Afinal, como saciar a curiosidade de mentes jovens e ingênuas, e responder a indagações do tipo: “se a Constituição dispõe assim, por que o ministro X do tribunal Y fez assado, e ninguém reverteu a decisão?” Em dias em que os perigos de censura, retaliações profissionais e até prisões políticas rondam os espíritos mais livres, a alternativa ao cinismo é contar com boa dose de sorte.
Para surpresa de ninguém, os presos acusados da prática dos vandalismos do 08/01 têm sido inquiridos por meio de interrogatórios padronizados, em tratamento equivalente ao conferido a cabeças de um mesmo rebanho, que nada tenham de seu para relatar ao magistrado. Mais uma deformidade de um caso monstruoso, cujos envolvidos serão julgados por uma suprema corte carente de jurisdição sobre eles, e que sequer merecerão uma análise de suas condutas individuais, em afronta a princípio constitucional, como já debatido aqui.
Como se não bastassem tantos abusos, o grupo de réus, enxergados pelos togados de cúpula apenas como massa homogênea, terá de responder a uma mesma lista de 16 indagações, inclusive: (i) sobre o recebimento de auxílio para a chegada a Brasília; (ii) sobre a “postura” da Polícia Militar local durante o ocorrido; (iii) sobre eventual intenção do acusado de “depor o governo ou auxiliar a implantação de um novo governo”; (iv) sobre o político apoiado pelo réu na data da invasão; e (v) sobre a opinião do inquirido acerca da lisura e da confiabilidade do processo eleitoral.
No sistema acusatório que costumava ser o nosso, com a devida separação entre as funções de acusação, defesa e julgamento, o interrogatório, meio de produção de provas e, ainda, ferramenta de defesa do réu, se dividia em duas partes. Na primeira, de cunho bastante objetivo, o interrogando era ouvido sobre sua residência, profissão e vida pregressa, em particular sobre detenções anteriores; já na segunda, referente ao delito em si, o envolvido era indagado sobre a veracidade das acusações contra ele, sobre as provas, as testemunhas do caso, sobre os instrumentos utilizados no delito, sobre os pormenores e as circunstâncias da infração, e, ainda, sobre fatos adicionais por ele trazidos em seu benefício.
Portanto, à luz da legislação processual que deveria viger, cada um dos envolvidos teria de ser interrogado sobre as circunstâncias de sua conduta de danificar e/ou favorecer a depredação das instalações invadidas, pois, em se tratando de pessoas desarmadas, não organizadas/treinadas em grupamentos paramilitares, e atuantes em pleno domingo (dia de folga das autoridades!), não há que se presumir a prática de outro crime que o de dano. No entanto, sob a égide da constituição alexandrina, que revogou toda a ordem jurídica anterior, crimes comuns são tornados fatos políticos, e a averiguação em torno da atuação e do intento de cada réu cede lugar à perquirição sobre as preferências político-partidárias de uma massa da qual não se pretende obter a verdade real dos fatos, mas apenas extrair “uma certa verdade”, preestabelecida pelos senhores de mando. Na prática, uma pesquisa eleitoral realizada a posteriori e por togados, e ao custo da liberdade dos envolvidos. Sabe-se lá por quanto tempo, e sob quais condições.
Em Estados de Direito minimamente saudáveis, togados se preocupam em aferir as relações entre criminosos e vítimas e entre os diversos delinquentes (em ofensas cometidas por vários autores), a obtenção das ferramentas para a execução do delito, a forma como este foi levado a cabo e a verdadeira motivação do meliante ao delinquir. Entre nós, onde supremos togados se investem da prerrogativa de invadir convicções íntimas, quase desempenhando compulsoriamente os papeis de psicanalistas e confessores religiosos, o mero desejo de ver a queda de Lula e o retorno de Bolsonaro pode corresponder a uma confissão de culpa, robusta o suficiente para privar um indivíduo de seu direito fundamental de ir e vir.
No magnífico Ensaio sobre a Lucidez, José Saramago descreve a situação hipotética em que uma população de local não identificado teria, em uma certa corrida eleitoral, registrado mais de 80% de votos em branco, e despertado, com isso, a perplexidade e, em seguida, a fúria das autoridades políticas. Em seu anseio de vingança contra uma maioria esmagadora dos ditos “brancosos”, cidadãos que, embora no exercício legítimo do direito ao voto, teriam incorrido em “atos antidemocráticos” – ah, os poderosos e suas contradições! -, os governantes puseram em prática toda a espécie de planos destinados à desestruturação daquele grupo social, dentre os quais o abandono da capital pelas autoridades e até a cessação de serviços públicos essenciais. Nada funcionou, já que os indivíduos se arranjaram muito bem, ainda que ao “desamparo” dos detentores do poder.
Frustrados, os governantes migraram suas ações para o plano da retórica e, em conluio com a grande mídia, passaram a tentar associar a “derrocada democrática” de então à cegueira branca que, quatro anos antes, havia assolado toda a população, como se a doença de outrora tivesse ressurgido sob a forma das cédulas eleitorais não-preenchidas. Como toda a narrativa só se sustenta mediante a identificação do “culpado”, contra o qual todos devem apontar o dedo, os políticos não tardaram a escolher seu bode expiatório: a esposa de um médico oftalmologista, que, durante o flagelo, havia sido a única a não se cegar.
Assim, como seria o interrogatório daquela senhora, suspeita de ser a “dirigente do movimento subversivo que veio a pôr em grave perigo o sistema democrático”, nas palavras de Saramago? Acusada precisamente de que? De “não ter se cegado, quando toda a cidade andava por aí, aos tombos”?
Sem saber como inquirir aquela que já havia sido condenada a priori, o comissário encarregado das investigações indaga ao ministro, seu superior, “que acontecerá se não se encontrarem provas de sua culpabilidade.” Ao que o chefão responde: “o mesmo que aconteceria se não se encontrassem provas da inocência”, pois “há casos em que a sentença está escrita antes do crime”. Diálogo bem ilustrativo do confronto entre um funcionário fiel aos princípios do sistema acusatório, característico de territórios livres e democráticos, e um político adepto do sistema inquisitivo, próprio de governos autoritários, onde juízes reúnem todas as funções do processo, onde os procedimentos correm em sigilo, longe dos olhares “indiscretos” do povo, onde inexistem garantias constitucionais e onde o que prevalece é uma perversa presunção de culpa daqueles considerados não muito simpáticos ou adeptos ao regime – e, como bem colocado pelo autor, onde “os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão.”
Lamentável e muito preocupante que a obra de Saramago não possa ser percebida, entre nós, como uma distante e improvável distopia. Não mais.
Kátia Magalhães, colunista do IL
|
|