Marco Antonio Spinelli*
Há alguns anos o Netflix lançou uma série chamada “Thirteen Reasons Why”, ou, em tradução livre, “As Treze Razões”. Houve muita polêmica e muito bafafá em torno da série, que contava a história de uma menina, Hanna Baker, que se suicida e manda fitas cassete (fitas cassete? Como assim?) para treze pessoas que teriam levado a menina a tirar a própria vida. As pessoas foram confrontadas com as decepções e angústias que levaram a personagem a tirar a um beco sem saída. Foram disponibilizadas hotlines e terapeutas de plantão para prevenir os Cluster Suicides, ou Suícidios em Série que o exemplo de Hanna Baker poderia provocar. Escolas marcaram reuniões e grupos de apoio foram montados nas redes sociais, esperando pela tormenta que não veio. Não houve uma corrida às lojas para comprar fitas cassete ou gravadores, até porque não acho que seria possível. Não houve listagem de abusadores ou abandonadores acusados de desencadear atos suicidas. O tema foi estudado e descobriu-se que, de fato, enquanto houve a polêmica e pessoas se descabelando com o assunto, houve sim um aumento de tentativas e de suicídios em pessoas vulneráveis, não porque assistiram a série (assistir a série não provocou aumento de risco, pelo que me lembro), mas pela ênfase no assunto, o que criou um campo de indução de atos e pensamentos suicidas nessa sub população.
Eu assisti a primeira temporada da série, que foi até onde consegui levar a minha curiosidade psiquiátrica. Era boba e melodramática, mas Hanna Baker falou uma grande verdade quando estava tentando escolher uma faculdade para si. “A gente passa dezesseis anos na Disney, aí chegam e te falam: agora você é uma adulta e precisa decidir a profissão que vai ter no resto de sua vida”. Concordo com ela. Não há um bom cuidado em nossa cultura com as transições e períodos de mudança e crescimento, e cada vez tem mais gente perdida no caminho. Em tempos de mundo virtual, então, temos muita gente presa no mundo dos jogos online e das redes sociais, e a Realidade como conhecemos deixa de existir. Hanna Baker se suicida antes de dar o passo para sua vida adulta, com dores e decepções que a fazem desistir. Temos milhares de jovens nem, nem: nem estuda, nem trabalha, nem p… nenhuma. Os pais, educadores, terapeutas, famílias ficam com as mãos atadas sem saber o que fazer, e essa omissão está cobrando um preço cada vez mais alto. Temos crianças de nove anos se cortando e escrevendo bilhetes suicidas. O que temos que fazer? Não sei ao certo, mas temos que fazer logo.
Como diria Hanna Baker, a Infância virou um grande estágio na Disney. Tudo é um belo paraíso de brincadeiras e sonhos de consumo. Pais trabalham cada vez mais para tentar atender os padrões de consumo impostos pelo Tik Tok. A grande batalha que se travava na adolescência agora está se deslocando para a pré Adolescência, onde as crianças sofrem uma pressão darwiniana para ser popular, fazer dancinhas e receber clicks. A pressão pela popularidade e aparência e, mais recentemente, uma discussão prematura sobre a identidade e gênero, está tornando o início da puberdade numa travessia e tanto.
O título deste texto deriva de uma música de Renato Russo: “E há tempos, nem os santos/Tem ao certo a medida da maldade/ E há tempos são os jovens que adoecem”. Os jovens manifestam os sintomas da doença dos adultos. E a doença deriva do Individualismo. E do Coletivismo. Ficou confuso agora?
Temos mais conforto e mais tecnologia que já houve em toda a História. A Psiquiatria evoluiu cem anos nos últimos trinta, e as pessoas estão cada vez mais infelizes, solitárias e os índices de depressão e autoagressão não param de subir. Nicolau Maquiavel dizia que o melhor jeito de governar era dividindo as pessoas. Essa lógica domina o nosso tempo. O Individualismo é uma forma perfeita de criar pessoas infelizes, hostis e fragilizadas. O Coletivismo vai na mesma direção. A necessidade de caber dentro da fôrma que a cultura coloca vai deixando as crianças solitárias, medrosas e com pouca capacidade de enfrentar as dificuldades. Temos o contraste da Disney que é a nossa Infantolatria e a necessidade de manter as crianças numa espécie de Infância Eterna, e quando a Realidade vem na forma de derrotas, brigas e necessidade de cumprir tarefas, corrigir erros e aguentar a pressão, então vemos as crianças mais vulneráveis, cortando as dobras do corpo com gilete e escrevendo mensagens suicidas no Facebook.
A Infância precisa ser melhor cuidada. As crianças (e os adultos) precisam se tratar da Adultofobia que perpassa nossa cultura. Deixar a criança num mundo sem tarefas, sem exigências, sem LIMITES, leva ao solavanco que a personagem de Hanna Baker descreve na série: ninguém me exigia nada, agora preciso virar adulta na marra. Talvez a resposta esteja na própria música de Renato Russo: “Disciplina é liberdade/Compaixão é fortaleza/Ter bondade é ter coragem”. Vamos precisar de disciplina, compaixão e muita, muita coragem para parar de empurrar essas questões com a barriga, esperando que os problemas se resolvam sozinhos.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”