Esse título me ocorreu junto com a música belíssima de Gilberto Gil: “Vim parar na beira do cais/ Onde a estrada chegou ao fim/ Onde o fim da tarde é lilás/ Onde o sol arrebenta em mim/ O lamento de tantos ais”.
A música descreve o poeta se refugiando no final de uma tarde de briga, de sofrimento amoroso, do “Só a guerra faz nosso amor em paz”. Pessoas sofrem pela presença e pela ausência de parceiro e de parceria. Não é incomum que a paz venha acompanhada da tristeza das batalhas, amorosas ou não.
O fato é que somos sempre compelidos à guerra. Somos soldados do BOPE invadindo as favelas de nossas dificuldades, tentando vencer as batalhas que não vencemos: batalhas para perder peso, batalhas para encontrar o verdadeiro amor, batalhas para encontrar o conforto econômico e o futuro protegido, batalhas que nos consomem no dia a dia deixando sempre um gosto de que algo ainda não está bom no final da tarde lilás.
Uma das minhas birras com os livros de AutoAjuda (os terapeutas costumam torcer o nariz com esses livros que são como locutores de FM berrando aos nossos ouvidos que devemos ser felizes, magros, animados, positivos) é justamente essa coisa de jogar sempre para o amanhã o que poderia ser vivido hoje. Pense positivo e conquiste o carro, o namorado, a mansão de seus sonhos.
Outro dia estava lendo um jornal e fiquei emocionado com uma matéria sobre a religião no dia a dia das pessoas; o repórter colheu um depoimento de uma senhora muito simples que havia se convertido ao Budismo e descobrira que poderia ser útil e feliz sendo uma boa empregada doméstica. Desde este insight imenso, ela cultivava uma atitude alegre e caprichosa em tudo o que fazia, tornando-se uma ótima profissional, além de realizada.
Muita gente torceria o nariz diante desse texto dizendo que isso é estimular a alienação e o conformismo, as pessoas precisam querer crescer, a senhora deveria voltar a escola, ser empreendedora e virar diarista, montar uma empresa de faxinas, fazer MBA e depois, sim, após o terceiro infarto do miocárdio, gozar da alegria da meta alcançada.
Esses são nossos valores, ou a ausência deles, que nos tornam alienados de algumas verdades simples, que costumam ser as maiores verdades: não temos como antever e muito menos controlar o futuro. Gastamos muita energia com ele. Devemos ser imprevidentes, viver o limite, desprezar os planejamentos? Muito pelo contrário. Podemos planejar, cuidar e expandir as fronteiras de nosso futuro, é uma das vantagens de nosso Neocortex recém conquistado em nossa jornada evolutiva. Mas a serenidade da senhora, que transforma cada pequeno ato de limpeza e arrumação como algo transcendente é um exemplo do estado neurofisiológico que devemos praticar. Todo dia. Um estado que me lembra a paz, invadindo meu coração.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta younguiano e autor do livro “Stress o Coelho de Alice Tem Sempre Muita Pressa”